Nove de outubro de 2012. Um ônibus, estudantes e um
Colt 45. Dessa estranha e quase mortal relação surge uma protagonista: Malala,
a garota que foi baleada pelo Talibã. Os acontecimentos desse dia
passaram a definir a garota que defende o direito à educação, como o próprio
título do livro que narra os acontecimentos sugere: Eu sou Malala – a história da garota que defendeu o direito à educação
e foi baleada pelo Talibã.
A obra, lançada em 2013, um pouco mais de um ano após
o atentado, tem como objetivo não contar o que aconteceu, algo que o mundo
inteiro acompanhou, estupefato, mas contar a trajetória que culminou no
atentado que feriu três meninas, sendo Malala de forma mais grave.
O livro, de vinte e quatro capítulos divididos em
cinco partes, narrado em primeira pessoa (Malala), faz uma descrição minuciosa da vida
cotidiana com a família, com as amigas, com detalhes de momentos e de
sensações, o que faz com que o leitor sinta-se inserido no ambiente dela,
contribuindo para apreender a situação a partir dos seus sentidos e
compreensão. Assim, o leitor é convidado a conviver na região pobre, mas com
belas paisagens, a adentrar à casa onde nasce Malala, cujo momento é descrito
quase com um sentimento de predestinação, uma vez que seu nome é uma referência
a Malalai de Maiwand, maior heroína do Afeganistão, que inspirou o seu exército
a derrotar o britânico na Segunda Guerra Anglo-Afegã, em 1880. Malalai foi
morta, mas sua coragem ao marchar no campo, diante das tropas, inspirou os
homens a virar a batalha. “Malalai é a Joana D’Arc do pachtuns”
(LAMB; YOUSAFZAI, 2013: 23). Esperava-se que uma nova Malalai ressurgisse.
Surgiu Malala.
Seguindo
a estratégia de convidar o leitor a se inserir no contexto de experiências de
Malala, um aspecto fundamental apresentado, além da descrição da paisagem e da
vivência cotidiana das pessoas, perpassando pelas suas conquistas e
dificuldades, é a descrição minuciosa da importância e o respeito que o seu
povo tem pela tradição e pela religião. Contudo, a família de Malala é
apresentada como sendo diferente do que se costuma presenciar no Vale do Swat,
sobretudo no tratamento dado às mulheres. Sua família é peculiar: saudaram o
nascimento de uma menina no “lugar onde rifles são disparados em comemoração a
um filho, ao passo que as filhas são escondidas atrás de cortinas, sendo seu
papel na vida apenas fazer comida e procriar” (LAMB; YOUSAFZAI, 2013: 21). Seu
pai, dono de escola e defensor do direito à educação das meninas, sempre
incentivava Malala a estudar e a se manifestar. Após o atentado, ao receber um
prêmio por ela, diz: “No meu lado do mundo a maior parte das pessoas é
conhecida pelos filhos que têm. Sou um dos poucos pais sortudos conhecidos pela
filha que têm”. (LAMB; YOUSAFZAI, 2013: 320)
Em meio às descrições de paisagens, existem
referências à história do Afeganistão que se entrelaça com a história de vida
de seu pai e de sua família. Seu pai, desde jovem, foi um ativista em prol da
educação, defendendo o direito de as meninas também irem à escola. Inclusive,
no livro há frequentemente a revelação do medo que tanto Malala quanto sua mãe
sentiam por imaginar que o Talibã atacaria seu pai. Malala nunca imaginou que
ela seria um alvo, pois o pensamento era de que o Talibã não atacava crianças.
Outro aspecto importante apresentado no livro é o da
religião. Malala é islâmica, faz suas orações diárias pedindo paz, educação e
para ser mais alta. Esse é outro elemento que possibilita a proximidade com o
leitor. Ela é uma adolescente. Adolescentes rezam por coisas “simples” que,
para eles, não são tão simples assim. Porém, apesar, de ser jovem, a imagem que
dela é apresentada, é de uma jovem por demais sensata e consciente das
deficiências de seu país e pronta para apresentar críticas, sobretudo ao
Talibã, mas não somente. Ela faz críticas ao governo afegão e também aos
Estados Unidos que, desde a invasão soviética, instigam a “guerra santa”, através dos livros escolares
que ensinavam a aritmética com a utilização de linguagem de guerra: “se 10
russos são infiéis, 5 são mortos por 1 muçulmano, restam 5” (LAMB; YOUSAFZAI,
2013: 41).
Outra
crítica perpetrada a este país relaciona-se com sua ação na busca, prisão e
morte de Osama bin Laden que, escondido no Paquistão foi capturado pela força militar
estado-unidense, sem qualquer auxílio do exército paquistanês, fato que
contribuiu também para aumentar as críticas ao governo do Paquistão que não foi
suficientemente capaz de solucionar esse problema.
Sem dúvida alguma, a ação de
Osama bin Laden e os acontecimentos de onze
de setembro de 2001 contribuíram para uma avassaladora mudança nas vidas dos
paquistaneses. Por um lado, alguns religiosos viram Bin Laden como um
herói. Era possível comprar pôsteres e caixas de doces com sua imagem. Diante
disso, aproximadamente 12 mil jovens foram lutar pelo Talibã no Afeganistão. As
pessoas se juntaram a ele por acharem que teriam uma vida melhor. Os
trabalhadores manuais não tinham reconhecimento e se juntaram ao Talibã para
obter status e poder. O Talibã foi, portanto, a tábua de salvação
para muitos.
Nesse
contexto, as madrasas atraíram muitos jovens, por
meio de anúncios de treinamento para a luta, para a jihad.
Os pachtuns muito religiosos estavam furiosos com a invasão americana no
Afeganistão. As madrasas também acolheram os órfãos do terremoto de 2005. Elas
são como
uma
espécie de previdência, pois dão comida e alojamento, mas o ensino que
ministram não segue o currículo normal. Os meninos aprendem o Corão pela
repetição, balançando o corpo para a frente e para trás enquanto recitam.
Aprendem também que não há coisas como ciência ou literatura, que dinossauros
nunca existiram e que o homem jamais foi à Lua. (LAMB; YOUSAFZAI, 2013: 117).
Por
outro lado, o Talibã representou o ponto final na vida de tantos outros. Havia toque
de recolher; houve a destruição de 400 escolas somente em 2008; havia A Praça Sangrenta, em que corpos
amanheciam na praça para serem observados, como um aviso. Houve a necessidade
de 1/3 da população do vale do Swat, onde Malala vivia, se retirar, passarem a
viver como PDIS, pessoas deslocadas internamente. Houve o atentado. Houve necessidade de
buscar melhores condições médicas em Birminghan, Inglaterra, onde mora
atualmente com sua família.
Ainda no hospital recebeu
milhares de cartões, presentes, visitas e apoios de pessoas ilustres. Como
afirma no livro, o Talibã tinha transformado sua causa em uma causa mundial, com
exceção do Paquistão, de onde surgiram severas críticas a Malala, acusada de
fingir o atentado para poder pedir asilo e viver em outro país.
O livro, portanto,
apresenta-se como uma forma de promover o conhecimento não só da história de
uma adolescente que foi atacada, mas também sobre uma região e uma religião que
ainda são pouco conhecidos verdadeiramente, ao menos no Ocidente que, motivado
pelos acontecimentos de onze de setembro de 2001, está impregnado de
preconceito em relação ao Oriente e, sobretudo, à religião islâmica.
A trajetória da ascensão do Talibã no Afeganistão é
feita minuciosamente, coerente com a proposta de inserir o leitor no contexto,
de modo a fazê-lo compreender tanto a “lógica” do Talibã quanto a experiência
dos afegãos diante da ineficácia do governo em combatê-lo. Assim, o leitor,
sobretudo ocidental, uma vez que há inúmeras referências à sua cultura, como as
leituras – de Tolstoi a Paulo Coelho - e
o cinema – o filme Crepúsculo –, é convidado a visualizar a possibilidade de
uma conexão com o Oriente.
Além disso, o mais interessante é o fato de, além de contar a
história de Malala, o livro oferece algumas informações sobre o Islã, ainda
muito incompreendido pelo Ocidente. A partir da história de Malala é possível
fazer uma distinção entre a religião islâmica e como um determinado grupo se
utilizou dessa religião para atender a propósitos particulares. Há, portanto,
uma tentativa de restabelecer o Islã, que não deve ser confundido com o Talibã.
“Nós pachtuns, somos um povo religioso e amoroso. Por causa do Talibã, o mundo
todo anda dizendo que somos terroristas”. (LAMB; YOUSAFZAI, 2013: 151). Ademais,
é muito interessante reconhecer uma menina, uma adolescente que tem suas
convicções como mulher, cidadã e que essas convicções não entram
em conflito com a religião que, inclusive, contribui para as suas manifestações
e reivindicações.